I
Um dos lugares da vida social, nas Azenhas do Mar, era a pastelaria Ouress. Um dia entrou uma jovem desconhecida. Só pela sua aparição, pareceu-me que a cor do dia, e até a qualidade do ar, se transformava. Alta, esguia, reflexos dourados no cabelo e nos olhos, a tez rosada, os lábios tão cintilantes como a polpa de um fruto, aquela rapariga irradiava saúde, vida e alegria.
Eu nunca tinha visto nada igual. Uma fada.
Desde então, só tinha uma ideia fixa: voltar a vê-la. Durante vários dias fui instalar-me na pastelaria. Não saía de lá. Hospedei-me lá. Passava os meus dias à espera dela. De olhar fixo na porta, comia bolos lentamente, cada vez mais lentamente, para os fazer durar, a cada um, o máximo de tempo possível. Um palmier. Um pastel. Um palmier. Outro pastel. Uma tarte. Outra tarte diferente. Mais um palmier. Sentia náuseas. Quase indigestão. Mas por nada deste mundo sairia da pastelaria. Ai de mim! Ela não voltou. Uma vez, de longe, avistei-a na rua. E mais nada. Tinha-se ido embora. Não sabia quem ela era nem onde vivia. Tudo o que sabia dela era o seu nome: Catarina Vela.
II
Com a chegada iminente do verão, já não eram só as férias que se anunciavam. Era sobretudo a perspectiva de em breve voltar a ver Catarina Vela .
E, com efeito, poucos dias depois de ter chegado a férias, avistei a longa e delgada silhueta que esperava. Mais bela ainda que na minha recordação, mais sorridente, mais luminosa, Catarina Vela trazia uma blusa branca, uma longa saia plissada que se evadia em corola a cada passo que dava e um chapéu de donzela do século XIX.
O meu segredo não queria divulgá-lo nem expô-lo aos sorrisos nem à ironia. Preferia vaguear perto do palácio da minha Bela Adormecida. Esperava a passagem de Catarina Vela. Mas, quando a encontrava, não sabia que fazer, nem que dizer...
No último dia, aceitou um passeio a sós comigo. Mal acordei, nessa manhã, corri a abrir as persianas para ver se estava bom tempo. Sim, estava bom tempo. Sim, seria um dia quente, com céu azul, sol e canto de pássaros. Uma hora antes do encontro marcado já eu rodopiava à volta da casa de Catarina Vela. Quando ela apareceu, cintilante no seu vestido de seda azul, nem por um instante duvidei de que ia sair com a mais bela rapariga que o mundo podia oferecer. Tínhamos decidido ir merendar a uma quinta, partindo da praia e indo pela beira-mar para voltarmos pela estrada de Sintra.
Maravilhoso passeio ao fim do mundo, no ar do largo, com o odor do oceano. Tínhamos tantas coisas para dizer um ao outro! Dos nossos estudos, das nossas leituras. Do cinema. Das pessoas das Azenhas do Mar. De pessoas famosas e dos amigos comuns.
III
Várias vezes, ao longo da subida, para transpor um qualquer muro ou vedação, ofereci a mão a Catarina Vela para a ajudar. De todas as vezes, recusou. Era reserva? Medo? Desprezo? A primeira recusa surpreendeu-me. A terceira irritou-me. Quis pegar-lhe no braço. Soltou-se. De repente decidi que precisava de a beijar antes do fim do passeio.
Imediatamente a seguir começou a anoitecer. Tinha a noção de um dever a cumprir. A ideia de um combate a travar, a possibilidade de não atingir o objectivo, o sentimento de incapacidade caso falhasse, tudo isso me tirou imediatamente todo o prazer. A euforia apagou-se perante a inquietação.
A partir de então, só tive uma ideia: encontrar o melhor meio, o melhor momento para beijar Catarina Vela .
Mas esse beijo tinha perdido todo o sabor. Longe de me alegrar à ideia de felicidade que sentiriam os meus lábios aos tocar os dela, a ideia da luta a travar tornou-se um suplício. Já não olhava Catarina Vela como um objecto de doçura e calor, mas como um motivo de guerra, um objectivo a atingir a qualquer preço. Ela cantarolava enquanto caminhava, colhia aqui uma rosa, ali um brinco-de-princesa, esboçava um passo de dança. Mas aquele entusiasmo e aquela alegria de viver, que um momento antes me enchiam de felicidade, agora não faziam mais que aumentar o meu nervosismo. Já só pensava na obrigação de a beijar. No próximo plátano, aí vou eu. Não. Espero por aquele arbusto, lá em baixo. E a quinta chegou sem eu ter tentado nada. Numa sombra mais generosa, partilhou a merenda – água fresca e travesseiros da Periquita. Catarina Vela saboreou-os com um apetite soberbo. Eu? eu não fui capaz de engolir nada. E tivemos de partir de novo. E com as perguntas de Catarina Vela, que procurava compreender porque tinha eu perdido a minha jovialidade, cresceu em mim a angústia. Seguimos a estrada que entrava por um bosque de ciprestes que já se avistava ao longe. Decidi passar à acção ao atingir esse bosque. Mas, secretamente, esperava que um incidente enorme, uma queda de avião, a irrupção de um touro furioso ou outra coisa qualquer, tornassem vão o meu projecto.
E, à medida que nos aproximávamos do bosque, Catarina Vela parecia cada vez mais intimidante, inacessível. E nenhum engenho aéreo veio em meu socorro. Nenhum animal selvagem se mostrou. Só uma vaca num campo nos contemplava com simpatia. Tinha chegado a um tal ponto de ansiedade que já nem sequer conseguia olhar Catarina Vela.
IV
De repente, agarrei-lhe a mão e tentei atraí-la a mim. Ela retirou a mão. Talvez que perante essa pequena fuga fosse preciso obrigá-la.
Mas foi num tom quase suplicante que, agarrando-a suavemente pelos ombros, lhe disse: "Deixe-me beijá-la." Como se agarrada pelo diabo, ela repeliu-me e afastou-se a passos largos. Segui-a em silêncio. Regressámos às Azenhas do Mar. Ela partiu no dia seguinte.
Porque me rejeitou assim Catarina Vela?
Porque razão recusou com tanta violência uma carícia tão inocente?
Talvez eu tivesse querido ir depressa demais. Talvez ela não pretendesse, antes da partida, conceder-me o que, no seu espírito, eu poderia tomar por um acordo, uma promessa.
Talvez eu me tivesse simplesmente iludido ao julgar que lhe agradava.
Durante vários dias fechei-me em casa.
Eu.
Um dos lugares da vida social, nas Azenhas do Mar, era a pastelaria Ouress. Um dia entrou uma jovem desconhecida. Só pela sua aparição, pareceu-me que a cor do dia, e até a qualidade do ar, se transformava. Alta, esguia, reflexos dourados no cabelo e nos olhos, a tez rosada, os lábios tão cintilantes como a polpa de um fruto, aquela rapariga irradiava saúde, vida e alegria.
Eu nunca tinha visto nada igual. Uma fada.
Desde então, só tinha uma ideia fixa: voltar a vê-la. Durante vários dias fui instalar-me na pastelaria. Não saía de lá. Hospedei-me lá. Passava os meus dias à espera dela. De olhar fixo na porta, comia bolos lentamente, cada vez mais lentamente, para os fazer durar, a cada um, o máximo de tempo possível. Um palmier. Um pastel. Um palmier. Outro pastel. Uma tarte. Outra tarte diferente. Mais um palmier. Sentia náuseas. Quase indigestão. Mas por nada deste mundo sairia da pastelaria. Ai de mim! Ela não voltou. Uma vez, de longe, avistei-a na rua. E mais nada. Tinha-se ido embora. Não sabia quem ela era nem onde vivia. Tudo o que sabia dela era o seu nome: Catarina Vela.
II
Com a chegada iminente do verão, já não eram só as férias que se anunciavam. Era sobretudo a perspectiva de em breve voltar a ver Catarina Vela .
E, com efeito, poucos dias depois de ter chegado a férias, avistei a longa e delgada silhueta que esperava. Mais bela ainda que na minha recordação, mais sorridente, mais luminosa, Catarina Vela trazia uma blusa branca, uma longa saia plissada que se evadia em corola a cada passo que dava e um chapéu de donzela do século XIX.
O meu segredo não queria divulgá-lo nem expô-lo aos sorrisos nem à ironia. Preferia vaguear perto do palácio da minha Bela Adormecida. Esperava a passagem de Catarina Vela. Mas, quando a encontrava, não sabia que fazer, nem que dizer...
No último dia, aceitou um passeio a sós comigo. Mal acordei, nessa manhã, corri a abrir as persianas para ver se estava bom tempo. Sim, estava bom tempo. Sim, seria um dia quente, com céu azul, sol e canto de pássaros. Uma hora antes do encontro marcado já eu rodopiava à volta da casa de Catarina Vela. Quando ela apareceu, cintilante no seu vestido de seda azul, nem por um instante duvidei de que ia sair com a mais bela rapariga que o mundo podia oferecer. Tínhamos decidido ir merendar a uma quinta, partindo da praia e indo pela beira-mar para voltarmos pela estrada de Sintra.
Maravilhoso passeio ao fim do mundo, no ar do largo, com o odor do oceano. Tínhamos tantas coisas para dizer um ao outro! Dos nossos estudos, das nossas leituras. Do cinema. Das pessoas das Azenhas do Mar. De pessoas famosas e dos amigos comuns.
III
Várias vezes, ao longo da subida, para transpor um qualquer muro ou vedação, ofereci a mão a Catarina Vela para a ajudar. De todas as vezes, recusou. Era reserva? Medo? Desprezo? A primeira recusa surpreendeu-me. A terceira irritou-me. Quis pegar-lhe no braço. Soltou-se. De repente decidi que precisava de a beijar antes do fim do passeio.
Imediatamente a seguir começou a anoitecer. Tinha a noção de um dever a cumprir. A ideia de um combate a travar, a possibilidade de não atingir o objectivo, o sentimento de incapacidade caso falhasse, tudo isso me tirou imediatamente todo o prazer. A euforia apagou-se perante a inquietação.
A partir de então, só tive uma ideia: encontrar o melhor meio, o melhor momento para beijar Catarina Vela .
Mas esse beijo tinha perdido todo o sabor. Longe de me alegrar à ideia de felicidade que sentiriam os meus lábios aos tocar os dela, a ideia da luta a travar tornou-se um suplício. Já não olhava Catarina Vela como um objecto de doçura e calor, mas como um motivo de guerra, um objectivo a atingir a qualquer preço. Ela cantarolava enquanto caminhava, colhia aqui uma rosa, ali um brinco-de-princesa, esboçava um passo de dança. Mas aquele entusiasmo e aquela alegria de viver, que um momento antes me enchiam de felicidade, agora não faziam mais que aumentar o meu nervosismo. Já só pensava na obrigação de a beijar. No próximo plátano, aí vou eu. Não. Espero por aquele arbusto, lá em baixo. E a quinta chegou sem eu ter tentado nada. Numa sombra mais generosa, partilhou a merenda – água fresca e travesseiros da Periquita. Catarina Vela saboreou-os com um apetite soberbo. Eu? eu não fui capaz de engolir nada. E tivemos de partir de novo. E com as perguntas de Catarina Vela, que procurava compreender porque tinha eu perdido a minha jovialidade, cresceu em mim a angústia. Seguimos a estrada que entrava por um bosque de ciprestes que já se avistava ao longe. Decidi passar à acção ao atingir esse bosque. Mas, secretamente, esperava que um incidente enorme, uma queda de avião, a irrupção de um touro furioso ou outra coisa qualquer, tornassem vão o meu projecto.
E, à medida que nos aproximávamos do bosque, Catarina Vela parecia cada vez mais intimidante, inacessível. E nenhum engenho aéreo veio em meu socorro. Nenhum animal selvagem se mostrou. Só uma vaca num campo nos contemplava com simpatia. Tinha chegado a um tal ponto de ansiedade que já nem sequer conseguia olhar Catarina Vela.
IV
De repente, agarrei-lhe a mão e tentei atraí-la a mim. Ela retirou a mão. Talvez que perante essa pequena fuga fosse preciso obrigá-la.
Mas foi num tom quase suplicante que, agarrando-a suavemente pelos ombros, lhe disse: "Deixe-me beijá-la." Como se agarrada pelo diabo, ela repeliu-me e afastou-se a passos largos. Segui-a em silêncio. Regressámos às Azenhas do Mar. Ela partiu no dia seguinte.
Porque me rejeitou assim Catarina Vela?
Porque razão recusou com tanta violência uma carícia tão inocente?
Talvez eu tivesse querido ir depressa demais. Talvez ela não pretendesse, antes da partida, conceder-me o que, no seu espírito, eu poderia tomar por um acordo, uma promessa.
Talvez eu me tivesse simplesmente iludido ao julgar que lhe agradava.
Durante vários dias fechei-me em casa.
Eu.
3 comments:
As azenhas do Mar sempre foram refugio de amantes e sanatório para almas torturadas.
O sal da maresia cura as feridas da alma e põe nos lábios dos amantes um sabor de loucura.
Não é de admirar este amor ardente por belas desconhecidas nas azenhas. Nem todos correm bem, mas quando correm, ninguém os agarra.
bela, bela prosa. Poderá ter continuação, ou será uma tragédia de x-actos e muito sangue?
...E pensar que surgiu de um plátano.
Da minha janela, aquele abraço.
Hoje tambem abri a minha janela para as Azenhas do MAR e gostei do que vi.
Abraço
P.Carlos
Não, não foi nas Azenhas do Mar...mas foi lá perto...na Praia das Maças...num dia quente de verão...junto ás rochas salpicadas pelo mar... que se deu início ao mais tórrido romance de amor de sempre (o meu) ...sim foi aí...
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