Thursday, January 25, 2007

A Solidão como Abrigo

Da leitura que fiz dos Sermões antonianos, um dos temas que mais me fascinou foi, sem dúvida, o tema da solidão, daí: A Solidão como Abrigo.

Santo António apresenta o tema da solidão a par de outros temas ou conceitos como: nudez, desnuamento, pobreza, simplicidade, silêncio ou vazio, mas o título desta comunicação apenas pretende explicitar a aparente paradoxalidade do pensamento antoniano em relação à tarefa essencial do homem rumo a Deus: a de se aproximar d'Ele pelo esvaziamento da alma, a de estar no mundo estando abrigado do que nele existe.

O homem deve libertar-se de cogitações e afeições mundanas afim de alcançar uma solidão que não é senão a pureza de espírito necessária à concretização daquilo porque suspira: a contemplação de Deus. Este esvaziamento é a única forma que a alma dispõe para que Deus nela habite, dado que Ele só entra quando tudo está vazio, quando, fruto da nossa fé, de tudo prescindimos.

A solidão antoniana é um estado que pressupõe o abandono das coisas e em que resta apenas um movimento, uma devoção: o amor a Deus. Sentimento este que leva, se for aceite até ao fim, a uma paz desértica, pois tendo sido aniquilados os elementos mundanos e temporais como apetites, preocupações e paixões, nada mais resta que não a pureza/pobreza de quem nada tem a não ser a vontade de ser com Deus.

Santo António alerta para a necessidade de radicalidade no acto da entrega. Assim, devemos não só abdicar dos deleites/imperfeições humanas, como também devemos oferecer a Deus tudo quanto de bom tenhamos acumulado. O esvaziamento é total, mas a opção é clara: ou optamos pelo ter e nada somos; ou queremos ser verdadeiramente, e então despojamo-nos de tudo o que encontrámos neste mundo.

A região da dissemelhança não é algo de novo em Santo António, mas ele usa esta expressão várias vezes, afim de, caracterizar o mundo em que o pecado faz com que o homem perca a original semelhança com o seu Criador. Ora, o homem virtuoso é bom e, por isso, semelhante a Deus. A virtude de que aqui se trata é a norma de vida dos que são humildes, dos pobres de espírito, daqueles que até o pó deste mundo, que se lhes fica pegado aos pés, sacodem (Lc. 10, 11). Deste mundo de ter e poder, os humildes, abrigam-se na solidão de quem visa entregar-se, só e totalmente, a Deus.

Só despido de vícios se pode ser puro, bem como, só o reconhecimento das próprias faltas pode levar ao conhecimento profundo do nosso ser e à reconciliação com Deus. Só abrigado na solidão se pode estar imune aos maus e mundanos pensamentos e assim, estar em paz. Não se considere a solidão como um esconderijo ou uma fuga, mas antes, como um abrigo onde pela pureza da sua alma o homem pode ambicionar ser feliz. Ser feliz, é estar-se plenamente preenchido, e isto sucede quando, depois de esvaziada a alma, Deus nela fala e descansa. Só a alma do humilde pode ser este lugar que Jesus Cristo, na sua vida, não teve para recostar a cabeça.

O solitário é bom mas pensa-se completamente inútil e inferior a todos os outros. Abdicou de tudo, lavou a sua alma, apagando o próprio espírito em favor da luz de Deus, que em lugar dele pode brilhar, e nada mais tem senão a vontade profunda de não ter outra vontade que não a de Deus.

A quietude que se encontra nesta solidão é fruto de uma concentração da alma, de um recolhimento em si mesma, onde, longe do pecado ela se pode tornar pura, e pura, porque vazia e apta a ser recompensada pela contemplação de Deus, prémio da fé que a levou a ousar tanto.

O desprezo pelo mundo tem sentido se for por amor a Deus. Sigamos pois Jesus Cristo. Entreguemos tudo, tudo, até o nosso próprio espírito nas mãos d'Aquele que, por amor a nós, entregou o seu, preterindo-se a si mesmo em nosso favor.

Esta simples perfeição, de se ser só, nu e vazio, é o apelo de Santo António, que nos prega a capacidade deificadora da solidão, da nudez e do esvaziamento da alma.

Cumpre-me, muito pessoalmente, prestar aqui uma homenagem ao trabalho do Professor Gama Caeiro em torno de Santo António. Foram os seus estudos que me introduziram no pensamento antoniano, é a sua obra Santo António de Lisboa (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2 vol.) que subjaz a tudo quanto acima foi dito. Dele só conheço aquilo que já tive oportunidade de ler (dado que nunca conheci pessoalmente o Professor Gama Caeiro) mas, e talvez por isso mesmo, deva aqui partilhar aquilo com que me deparei durante o meu estudo: Gama Caeiro é capaz de fazer passar não só as ideias, os conceitos abstractos, como também o testemunho; não só o pensamento de Santo António como também a própria presença deste que aqui estamos a homenagear. E tudo isto com o simples, ou talvez muito complexo, recurso que é a linguagem escrita. Talvez esta comunicação, resultado do meu estudo, nada vos tenha trazido de novo, mas que então fique assente que este aluno, ou melhor, este leitor é que de nada vale.

Antes do adeus, resta-me agradecer o convite à organização deste congresso, é para mim, como deveis calcular, uma das maiores honras que já tive oportunidade de ser alvo. É que o facto de daqui estar a falar-vos (mais de duas mil pessoas versadas em Filosofia), significa possuir o estatuto de filósofo. A Deus o agradeço. A-Deus.

Comunicação ao Congresso Internacional Pensamento e Testemunho
Porto, Outubro de 1996


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